Memória: A adolescente comunista presa na sede do Sindicato

postado em: Notícias | 0

gennyNa última edição do Jornal do Comerciário, publicamos um resumo do caso Genny Gleizer, a jovem comunista romena que foi presa por agentes do DOPS na sede do Sindicato dos Comerciários RJ e deportada por Getúlio Vargas em 1935. Aqui no site, com mais espaço, publicamos agora a versão completa dessa história que abalou a esquerda brasileira há 80 anos, contada pelo historiador Augusto C. Buonicore, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois.

O caso Genny Gleizer: a garota judia e comunista deportada por Vargas

Por Augusto Buonicore*

A história dos comunistas brasileiros está cheia de heroínas. Mas grande parte delas, infelizmente, continua desconhecida. Tratarei neste artigo de uma dessas personagens. Há 80 anos um acontecimento abalou a esquerda brasileira e deu início a uma grande campanha de caráter nacional, envolvendo amplos setores políticos e sociais. Refiro-me à prisão e deportação da jovem comunista judia Genny Gleizer. Um episódio, dentre muitos outros, que manchou a reputação da justiça brasileira.

Tudo começou em 15 de julho de 1935, quando um grupo de jovens – a maioria deles ligada ao Partido Comunista do Brasil – fazia uma reunião na sede do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio do Rio de Janeiro. O objetivo daquele encontro era organizar o primeiro congresso da juventude popular, estudantil e popular. Nada de criminoso havia naquilo, pois a nova Constituição liberal garantia o direito de reunião e de organização.

Contudo, o clima era de endurecimento político e o fascismo avançava no Brasil e no mundo. A Aliança Nacional Libertadora (ANL) havia sido decretada ilegal três dias antes. Contra ela o governo Vargas utilizou a recém-criada Lei de Segurança Nacional – ou, como era chamada pela esquerda, “lei monstro”.

O DOPS paulista, avisado por um espião de que haveria a referida reunião juvenil, invadiu o local e prendeu todos os presentes. Entre eles estava uma garota de apenas 17 anos. Ao contrário dos demais, ela era estrangeira. Nascera na longínqua Romênia e, pior, era uma judia comunista. Naqueles anos, a direita não se cansava de alardear a existência de um complô judaico-comunista para conquistar o mundo e destruir a civilização ocidental e cristã. Genny parecia se enquadrar perfeitamente nesse enredo macabro.

Quando tinha dez anos de idade seu pai, Motel Gleizer, imigrou para o Brasil, onde esperava encontrar melhores condições de trabalho e, assim, poder buscar toda a sua família. Um acontecimento, no entanto, precipitou-lhe os planos: a mãe de Genny se suicidou. Então, ela e sua irmã mais nova, Berta, tiveram de seguir a trilha do pai e abandonar a terra natal, onde crescia a onda antissemita.

As duas chegaram ao Brasil no mês de agosto de 1933 e passaram a residir com o pai nos arredores da Praça Onze, reduto da comunidade israelita na antiga capital da República. Logo no início de 1935, Genny mudou-se sozinha para São Paulo onde trabalhou como operária têxtil e depois num escritório. Possivelmente, foi nesse período que ingressou na Federação da Juventude Comunista.

Logo após a sua prisão, o seu quarto na pensão onde morava foi revistado pela polícia. A imprensa noticiou que no lugar havia sido encontrada farta propaganda comunista. Estava armado o cenário para o que seria uma das mais escabrosas tramas policiais e judiciais ocorridas no país até então. Um caso que serviria como modelo para futuras ações repressivas do governo Vargas.

Passados cinco dias no DOPS, na grande parte do tempo incomunicável, foi transferida ao presídio do Paraíso – mais conhecido como Maria Zélia, pois esse era o nome da antiga fábrica têxtil que existia ali. Genny foi jogada numa sela insalubre com outras presas comuns. Algo completamente ilegal tendo em vista a sua idade. Ela, pela lei, deveria ter sido encaminhada ao juizado de menores. Por isso, a polícia fichou-a como se tivesse 18 anos.

Quando os amigos e o pai foram procurá-la nas delegacias e nos presídios, a informação recebida era de que todos os jovens presos naquela fatídica reunião haviam sido colocados em liberdade. No entanto, a garota continuava desaparecida e o pai se desesperava. “Onde está Genny?” estampavam os jornais de esquerda. Temia-se pelo pior. Aventava-se que poderia ter sido morta pela polícia política, conhecida por seus métodos violentos.

Procurando escapar do cerco da família, dos advogados e da imprensa progressista, as autoridades a transferiram secretamente para uma cadeia pública de Campinas e continuaram negando que estivesse presa. Felizmente, em 19 de agosto, o jornalista Danton Gomes do Correio Popular descobriu que a garota estava jogada numa das celas da cidade e conseguiu fazer a primeira entrevista com ela. Assim ele descreveu o encontro na sua matéria: “De repente, uma jovem graciosa, de fisionomia quase infantil, abrindo caminho entre as demais detentas que, curiosas, haviam se aproximado da janela, mostrou por entre as grades de ferro o seu rosto simpático. Era Genny. (…) – ‘Ah! o senhor é repórter? Então me faça a caridade de dizer que estou presa aqui. Hoje estive lendo nos jornais que todos me procuram, mas ignoram o meu paradeiro’”. O segredo estava desfeito.

O caso rapidamente se transformou num escândalo nacional. A secretaria de segurança estadual transferiu-a para Mogi Mirim e Arthur Nogueira, num verdadeiro jogo de gato e rato. O objetivo dessas manobras era evitar que os advogados pudessem conseguir um habeas corpus e, assim, ganhar tempo para que fosse expedido o decreto de sua expulsão do país.

Dez dias após Genny ter sido descoberta em Campinas, o delegado da ordem política de São Paulo, Egas Botelho, continuava afirmando que ela teria sido solta e estava desaparecida:

–“Genny esteve presa algumas horas. Depois foi posta em liberdade”.

–“Como se explica então seu desaparecimento?”, perguntou-lhe o repórter.

–“Contra ela há uma ordem de expulsão, e, para fugir, sumiu”.

No momento em que ocorria essa entrevista, Genny estava presa na Central de Polícia do Rio de Janeiro. Uma operação feita em completo segredo. Logo retornaria a São Paulo. Nesse curto período ela estivera em 8 cativeiros diferentes sofrendo todo tipo de intimidação e maus-tratos. Nem o próprio pai conseguia vê-la. Lembramos que o país vivia sob a égide da Constituição liberal de 1934 – ainda não havia ocorrido o levante armado da ANL e nem decretado o Estado Novo.

Diante de sua comprovada prisão, as autoridades não tiveram como escapar e deram as suas primeiras versões, ainda que esfarrapadas. O delegado do DOPS paulista, Eduardo Lousada Rocha, disse que Genny era uma “agitadora precoce, de grande inteligência e de notável cultura marxista”. Ele não teve vergonha de dizer que nos documentos encontrados com a menina “estava um plano de infiltrar-se nos meios trabalhistas e estudantis para levar avante a revolução social. Esta deveria ser feita à noite. Seriam cortadas as ligações telefônicas e telegráficas, interrompidos os meios de comunicação e, com a cidade às escuras – pois seriam cortadas as ligações de luz – dar-se-ia o assalto aos quartéis, repartições públicas e à polícia”. Como é possível notar, a autoridade policial paulista não entendia nada de revolução social. Passado algum tempo, outro plano insurrecional mirabolante e fictício – inventado pelos integralistas – teria maior sucesso e levaria à decretação do Estado Novo: era o Plano Cohen.

O secretário de Segurança Pública, Artur Leite de Barros Júnior, não ficou para trás: “Genny Gleizer é uma agitadora perigosa, veio da Europa especialmente para organizar e tomar parte desse congresso da juventude comunista do Brasil. E valendo-se das suas condições especiais de ser mulher, moça e bonita, conseguindo, em torno do seu nome, um ambiente de simpatia e de sentimentalismo, consegue o que não têm conseguido agitadores mais velhos, pregando o extermínio e a convulsão social”. Segundo ele, graças aos “seus dotes de inteligência, coragem e vivacidade ela poderia facilmente se desvencilhar da vigilância policial”. Isso, ainda segundo ele, justificaria sua prisão e incomunicabilidade.

Espalhava-se a preocupante notícia de que o governo federal acataria o pedido da polícia paulista e deportaria a jovem para a Romênia. Em resposta, ampliou-se a campanha pela sua libertação, que envolveu todos os setores democráticos da sociedade, que começavam a temer pelo avanço do fascismo. Um dos principais animadores do Comitê pela Libertação de Genny foi Paulo Emílio Salles Gomes, então aluno da Faculdade de Direito do Largo São Francisco,que,posteriormente, se tornaria um dos maiores críticos de cinema brasileiro.

O Comitê Regional do PC do Brasil lançou uma nota que afirmava: “cabe a nós, Partido Comunista, dar a máxima atenção ao caso Genny, pois devemos ser vanguarda da luta pela democracia e Genny encarna neste momento o símbolo dessa luta. (…) Onde houver um membro do partido deve surgir um comitê de libertação de Genny”. O mesmo apelo fez o Socorro Vermelho – organização internacional criada pelos comunistas para defender os perseguidos políticos. E os comitês se multiplicaram por todo o país.

Os jornais que mais se destacaram nesta campanha foram a Plateia, A Pátria e A Manhã – órgãos de imprensa que haviam sido simpáticos à Aliança Nacional Libertadora. Mas, não foram apenas esses. Outros jornais ligados aos setores liberais antiVargas se somaram à luta, pois se tratava de defender a democracia ameaçada.

Em setembro, um requerimento, assinado pelos deputados Abguar Bastos, Octavio da Silveira, Barros Cassal, Arthur Bernardes (ex-presidente da República), Octavio Mangabeira (ex-ministro de relações exteriores e futuro governador da Bahia) e outros, pedia esclarecimentos ao ministro da Justiça sobre “quais as razões da prisão da jovem, os motivos por que ela permanecia detida, o local onde se encontrava e se havia ou não um pedido de expulsão da menor no ministério”.

Em 8 de setembro Genny escreveria uma carta ao seu pai na qual dizia: “Papai, não tenho palavras para lhe agradecer pelas boas notícias que o senhor me forneceu. Estava hoje triste, me sentia tão sozinha, longe de meu pai e de meus colegas, e me sentia com tanta vontade de ser libertada e de estar onde eu pudesse trabalhar e conversar. Quando afinal recebi sua carta, fiquei tão contente, senti-me tão feliz. Tem gente que me compreende, que me defende, que me quer bem. Se papai soubesse, como me consola tal notícia, como fico satisfeita, como fico forte, que logo esqueço do que os malvados me fizeram, esqueço de minha tosse, da cadeia, e me sinto tão consolada. Agradeço-lhe papai, agradeço ao senhor e a todos que se interessam por mim. Quando for libertada, saberei agradecer-lhe de outra maneira. Hoje veio me visitar a minha tia Marche. Ela me falou que o advogado vai requerer amanhã outro habeas corpus. Que queria saber o resultado. Tenho muitas coisas a lhe escrever, mas agora não posso papai. Já são 5 horas e vão fechar a porta. Na cadeia é assim … Amanhã vou lhe escrever de novo (…) Papai, diga: o senhor não acha um absurdo terem medo de mim? Eu sou capaz de fazer mal a alguém? Papai nunca me abandone. Aceite um abraço de sua filha que lhe quer muito bem”.

A anarquista, educadora e feminista Maria Lacerda de Moura foi uma que saiu em defesa de Genny, publicando uma carta aberta endereçada às mães e mulheres do Brasil. Afirmava ela: “Não se discutam, agora, as ideias políticas ou as convicções de uma menina que conheceu a desgraça quase no berço e é por isso que aprendeu a pensar (…). Os altos chefes de Polícia e os Juízes não podem conceber como uma menina de 17 anos possa pensar em Congressos, porque as suas filhinhas só pensam em bailes e nas lindas fantasias para o carnaval (…). Dois mundos antagônicos (…). Mas saibamos pelo menos respeitar o heroísmo de uma meninazinha de 17 anos, que depois de trabalhar o dia inteiro, à noite procurar-se instruir numa escola noturna e frequentar congressos para aprender o que é sociologia política ou o que significa materialismo histórico.”

Milhares de outras pessoas assumiram a causa da “garota mártir”, como alguns jornais a chamavam. Um grupo de mulheres enviou uma carta ao ministro da Justiça e Negócios Interiores, Vicente Rao, exigindo a sua libertação: “Mães brasileiras que somos, residentes no Meier, lançamos nosso veemente protesto contra a monstruosa atitude do governo a que pertenceis, conservando presa, enquanto é covardemente preparada sua expulsão do território nacional, a jovem Genny Gleizer.”

Não somente as mulheres das classes populares e de esquerda se envolveram nessa luta. Um abaixo-assinado intitulado “As mães brasileiras ao lado de Geny Gleizer” trazia a assinatura deesposas de políticos importantes, como João Neves da Fontoura (líder civil da Aliança Liberal),Batista Luzardo(ex-chefe da polícia do Rio de Janeiro), Borges de Medeiros (ex-presidente do Rio Grande do Sul), Macedo Soares (futuro ministro da Justiça de Vargas), Moreira Lima (ex-interventor do Ceará).

Na Câmara Federal, entre outros, falaram a favor de Genny o deputado João Neves da Fontoura, Abguar Bastos e Domingos Velasco – estes dois últimos ligados à extinta ANL. Na Assembleia Legislativa de São Paulo se destacou o protesto de Alfredo Ellis Júnior, que estava muito longe de ser comunista.

Um prestigiado advogado paulista, Abrahão Ribeiro, buscou conseguir um habeas corpus, sem sucesso. Na peça jurídica afirmava “A injustiça feita a um é uma ameaça a todos.” Mas, no dia 30 de setembro, o Supremo Tribunal Federal indeferiu o pedido. A mesma coisa iria se repetir no caso de outras comunistas: Olga Benário e Elise Berger. Ambas deportadas e mortas num campo de concentração nazista.

O que não se sabia é que o decreto de expulsão já estava assinado e dizia: “O presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, considerando que a Romena Genny ou Seindla Gleizer, conforme apurado pela polícia do Estado de São Paulo, se tem constituído em elemento perigoso à ordem pública e aos interesses do país; resolve (…) expulsar a referida estrangeira do território nacional. Rio de Janeiro em 21 de agosto de 1935”. Assinavam Getúlio Vargas e o seu ministro da Justiça,Vicente Rao. Como uma menina de 17 anos pode ser uma ameaça à ordem pública de um país?

A campanha em sua defesa cresce. Em 9 de outubro ocorreu um grande ato no Teatro João Caetano na cidade do Rio de Janeiro. Nele falaram, dentre outros, a incansável Maria de Lacerda Moura, Carlos Lacerda, Francisco Mangabeira. E um novo manifesto foi aprovado.

Dois dias depois dessa manifestação, Genny foi transportada ao porto de Santos, escoltada por um forte esquema policial, e embarcada no navio francês Aurigny. De lá viajaria até o porto do Rio de Janeiro onde não lhe seria permitido descer ou receber os representantes das diversas delegações, especialmente de mulheres, que para lá foram prestar-lhe solidariedade. Apenas o pai pôde vê-la por 20 minutos. Quando foram separados à força, Genny teria dito aos policiais: “Os senhores agora me maltratam, me espancam, me insultam, mas quando Luiz Carlos Prestes dirigir o Brasil, hão de pagar por tudo isso.”Suas últimas palavras, segundo a imprensa, foram: “minha pátria, a que está gravada no meu coração, é o Brasil”.

Nesse ínterim, numa derradeira tentativa de mantê-la, vários jovens propõem-lhe casamento. Estrangeiras casadas com brasileiros, segundo a lei, não podiam ser deportadas. O jovem jornalista Artur Piccinini adiantou-se e, no dia 18 de outubro, realizou, por procuração, o matrimônio civil com Genny num cartório de São Paulo. Tudo em vão, pois a noiva já estava embarcada no navio que a levaria à Romênia.

A última parada do Aurigny em território brasileiro aconteceu no dia 23 em Recife, onde também ocorreram protestos de jovens, mulheres e trabalhadores. O futuro parecia-lhe tenebroso. Em poucos dias, ela seria entregue a um governo reacionário e antissemita. Contudo, chegando à Europa, o comandante do navio compadecido, com apoio da tripulação e dos portuários franceses, decidiu deixá-la livre. Mais do que isso, arranjou-lhe uma casa para que se alojasse. Quando iniciou a Segunda Guerra Mundial ela imigrou para os Estados Unidos, onde se formou em psicologia.

A mesma sorte não teve seu pai. Uma notícia nos dá conta do seu destino. No começo de 1936 – no auge da repressão aos comunistas – a polícia invadiu um centro cultural de trabalhadores judeus onde funcionava a redação do semanário de esquerda Unhoid (O Começo). Ali prendeu 23 militantes. A maioria deles acabou sendo deportada. Entre eles estava Motel Gleizer, que morreria assassinado num campo de concentração.

A pequena Berta – sem o pai e a irmã – ficaria sob os cuidados de militantes do Partido Comunista, sempre temendo ter o mesmo destino dos seus familiares. Em 1945 conheceria o jovem comunista Darci Ribeiro e com ele se casaria. Tornou-se uma estudiosa das nações indígenas e acompanhou o marido pelo interior do país em suas excursões científicas. Ela, assim como o pai, morreria sem rever a irmã. Esse foi mais um dos crimes do autoritarismo e do fascismo tupiniquins.

* Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

Clique aqui para ler a matéria ilustrada no site da Fundação Maurício Grabois

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

cinco × cinco =